Por: Paulo Cabral Tavares - advogado
Eu não estava
mais lá. Mas um ano depois de eu ter saído de Santana de Lustosa, lugar onde
estudei durante três anos de minha adolescência, em colégio interno, todos os
personagens eram meus conhecidos.
Naquele tempo a dificuldade
para estudar era enorme. Meus pais de recursos muito limitados, mas amparados
na vontade férrea de minha mãe de ver a gente estudar, seus oito filhos e mais
um que pegou para criar, nos fez ir com bolsas de estudo, estudar em Santana de
Lustosa, um pequeno lugarejo no município de Santo Amaro da Purificação, terra
de Caetano.
Somente a viagem
era uma verdadeira saga. Pegávamos um ônibus aqui em Ubatã - a partida com
treze, quatorze anos, para o desconhecido, sempre era muito traumática –
parávamos em Conceição do Jacuípe, onde dormíamos. No outro dia pegávamos o
trem para Catuiçara, hoje Teodoro Sampaio e de lá para Lustosa, mais ou menos
quinze quilômetros, íamos a pé, ou quem tinha um dinheirozinho alugava um burro
para carregar as malas, que levavam nossa roupas para passar três meses
internos. Com chuva ou com sol lá íamos nós. Mas não tinha drama, não. Nada de
lamentações. Era uma aventura de que gostávamos de certo modo. Eram dezenas de
meninos todos desta faixa etária – treze a dezessete, dezoito anos. Mala nas
costas e pé na estrada, mais do que daqui a Barra do Rocha.
No internato
éramos sessenta, setenta meninos e no lado feminino a mesma coisa. Cada um por
si e Deus por nós todos.
O internato era
sui generis. Tínhamos a obrigação de ir para a aula, frequentar a banca e
depois disso éramos livres para fazer o que quiséssemos, contanto que às seis
horas estivéssemos no internato. As fugidas para ver namoradas à noite
aconteciam. Com o risco de ser expulsos.
Havia um grande
salão que o Padre construiu para apresentações de teatro. Um grande palco, uma
coxia enorme nos fundos do palco, tribunas para que os oradores subissem para
falar, um piano, onde d. Glorinha, professora de música, tocava em determinados
dias.
Uma vez por mês,
não tenho tanta certeza da frequência com que realizávamos, mas havia neste
“teatro”, uma chamada “tertúlia lítero-musical”. Na verdade era uma sessão
dirigida e organizada por nós mesmos, onde nos reuníamos para recitar poesias,
defender teses, fazer discursos, enfim mostrar e treinar nosso lado literário.
E de vez em
quando um de nós dava um branco na tribuna e levava aquela vaia. Mas a maioria
aprendia a perder o medo do público, a falar em público e a debater temas
diversos.
Numa destas
ocasiões, eu não estava mais lá, um colega, Otacílio Gomes, que depois se
formou em advogado, subiu à tribuna para recitar uma poesia famosa. “SE” de
Rudyad Kipling. Não dá para reproduzi-la aqui, porque é um pouco longa, mas
vale a pena conhecê-la. É um poema extraordinário. Veja no Google.
E Otacílio
parecendo nervoso, apertando as mãos subiu à tribuna. Disse o nome da poesia –
SE, apertou as mãos mais algumas vezes, ficou mais nervoso ainda e levou quase
um minuto sem dizer uma só palavra. Um minuto numa tribuna sem falar nada é um
tempo enorme.
Então Ivo que
era daqui de Ubatã, tio de Gentil Neto, iniciou uma vaia. A vaia é coletiva e a
turba estimulada faz coisas que individualmente ninguém faz. Mas a vaia é
contagiosa e Otacílio tomou a maior vaia de sua vida.
Mas ainda na
tribuna, se recompôs, com dificuldade conseguiu acalmar um pouco a turma e
começou a recitar a poesia:
Se és capaz de
manter a tua calma quando,
Todo mundo em
redor já a perdeu e te culpa,
De crer em ti
quando estão todos duvidando
E para estes
achar uma desculpa
E a poesia termina assim:
Tu és um homem meu filho...
Não precisa
dizer da consagração de Otacílio. Nem precisa explicar que tudo não passou de
uma combinação com Ivo que estava programado para iniciar a vaia.
Mas ficou em todos
os que participaram a lembrança de um momento extraordinário e a tristeza de eu
não estar lá para viver também aquele momento.
UBATÃ, 30 DE JANEIRO DE 2014.
Paulo Cabral Tavares