01 fevereiro 2014

Artigo: Se...

Por: Paulo Cabral Tavares - advogado

Eu não estava mais lá. Mas um ano depois de eu ter saído de Santana de Lustosa, lugar onde estudei durante três anos de minha adolescência, em colégio interno, todos os personagens eram meus conhecidos.

Naquele tempo a dificuldade para estudar era enorme. Meus pais de recursos muito limitados, mas amparados na vontade férrea de minha mãe de ver a gente estudar, seus oito filhos e mais um que pegou para criar, nos fez ir com bolsas de estudo, estudar em Santana de Lustosa, um pequeno lugarejo no município de Santo Amaro da Purificação, terra de Caetano.

Somente a viagem era uma verdadeira saga. Pegávamos um ônibus aqui em Ubatã - a partida com treze, quatorze anos, para o desconhecido, sempre era muito traumática – parávamos em Conceição do Jacuípe, onde dormíamos. No outro dia pegávamos o trem para Catuiçara, hoje Teodoro Sampaio e de lá para Lustosa, mais ou menos quinze quilômetros, íamos a pé, ou quem tinha um dinheirozinho alugava um burro para carregar as malas, que levavam nossa roupas para passar três meses internos. Com chuva ou com sol lá íamos nós. Mas não tinha drama, não. Nada de lamentações. Era uma aventura de que gostávamos de certo modo. Eram dezenas de meninos todos desta faixa etária – treze a dezessete, dezoito anos. Mala nas costas e pé na estrada, mais do que daqui a Barra do Rocha.

No internato éramos sessenta, setenta meninos e no lado feminino a mesma coisa. Cada um por si e Deus por nós todos.

O internato era sui generis. Tínhamos a obrigação de ir para a aula, frequentar a banca e depois disso éramos livres para fazer o que quiséssemos, contanto que às seis horas estivéssemos no internato. As fugidas para ver namoradas à noite aconteciam. Com o risco de ser expulsos.

Havia um grande salão que o Padre construiu para apresentações de teatro. Um grande palco, uma coxia enorme nos fundos do palco, tribunas para que os oradores subissem para falar, um piano, onde d. Glorinha, professora de música, tocava em determinados dias.

Uma vez por mês, não tenho tanta certeza da frequência com que realizávamos, mas havia neste “teatro”, uma chamada “tertúlia lítero-musical”. Na verdade era uma sessão dirigida e organizada por nós mesmos, onde nos reuníamos para recitar poesias, defender teses, fazer discursos, enfim mostrar e treinar nosso lado literário.

E de vez em quando um de nós dava um branco na tribuna e levava aquela vaia. Mas a maioria aprendia a perder o medo do público, a falar em público e a debater temas diversos.

Numa destas ocasiões, eu não estava mais lá, um colega, Otacílio Gomes, que depois se formou em advogado, subiu à tribuna para recitar uma poesia famosa. “SE” de Rudyad Kipling. Não dá para reproduzi-la aqui, porque é um pouco longa, mas vale a pena conhecê-la. É um poema extraordinário. Veja no Google.

E Otacílio parecendo nervoso, apertando as mãos subiu à tribuna. Disse o nome da poesia – SE, apertou as mãos mais algumas vezes, ficou mais nervoso ainda e levou quase um minuto sem dizer uma só palavra. Um minuto numa tribuna sem falar nada é um tempo enorme.

Então Ivo que era daqui de Ubatã, tio de Gentil Neto, iniciou uma vaia. A vaia é coletiva e a turba estimulada faz coisas que individualmente ninguém faz. Mas a vaia é contagiosa e Otacílio tomou a maior vaia de sua vida.

Mas ainda na tribuna, se recompôs, com dificuldade conseguiu acalmar um pouco a turma e começou a recitar a poesia:

Se és capaz de manter a tua calma quando,
Todo mundo em redor já a perdeu e te culpa,
De crer em ti quando estão todos duvidando
E para estes achar uma desculpa
 E a poesia termina assim:
 Tu és um homem meu filho...

Não precisa dizer da consagração de Otacílio. Nem precisa explicar que tudo não passou de uma combinação com Ivo que estava programado para iniciar a vaia.

Mas ficou em todos os que participaram a lembrança de um momento extraordinário e a tristeza de eu não estar lá para viver também aquele momento.
                                               
UBATÃ, 30 DE JANEIRO DE 2014.
 Paulo Cabral Tavares